Depoimento de Marcello Bulhões

PASSARELA DAS AGREMIAÇÕES CARNAVALESCAS DO RECIFE 2013: COLORIDO CURRAL DE POBRE OU SIMULACRO MODERNO DE SENZALA CULTURAL?

De qualquer grupo ou agremiação que se apresentou na Avenida Dantas Barreto no carnaval de 2013 se extrai o mesmo roteiro: são 12 meses de preparo carnavalesco. Centenas de noites insones, muitas economias de gente trabalhadora, demasiado amor e milhares de horas trabalhadas. Suores incontáveis como água, jorrando para dar a liga do cimento cultural que molda a cultura popular brasileira e no caso em específico, a Pernambucana.Há três décadas participo do carnaval do Recife e a quase dez anos deixei de ser apenas público e me tornei parte de quem faz esta construção do ser brasileiro,a quem neste época ludicamente se denomina carnaval, fato que me autoriza como brincante e pesquisador da cultura popular a escrever esta denúncia.

Em outro artigo, datado de 2010 já mencionava o estado de miserabilidade da premiação oferecida às agremiações vencedoras do carnaval recifense, em função de sua caricatura de prêmio, considerando seu parco valor monetário, coroado por um troféu de plástico quase desmontável quando comparado a mais de duas centenas de milhões de reais à qual lucra o PIB pernambucano nesta festividade em apenas um mês.

Já dizia o dito que uma foto vale mais que mil palavras. Os microfones podres e carcomidos pela ferrugem oferecidos na passarela oficial de carnaval da Av. Dantas Barreto, onde desfilam a nata da cultura popular pernambucana,são singular e sem sua descarada má qualidade e pornográficos em seu significado.

A prefeitura do Recife, ente organizador que os puseram ali, diz em seu gesto, claramente: é isso que pobre merece! Merece ferrugem,esparadrapo, descaso, desorganização, sonorização tosca, luz ridícula e uma arquibancada de circo dura e descoberta para o público. No local de arrumação dos grupos nenhuma tenda, água, local de guarda de material, cadeiras, nada. Claro! Quem organiza este triste cenário de humilhação deve pensar…“já que pobre está acostumado a levar chuva nas centenas de paradas de ônibus do recife, porque iria reclamar de tomar chuva na cabeça assistindo sua comunidade desfilar?”

Minhas escusas pela crueldade destas palavras. Mais chocante que elas, é constatar que ano a ano, todos que ali desfilam são absolutamente desrespeitados. Roubados no que há mais belo de si. Todos e todas. Vencedores e vencidos. Todos roubados. Mas mesmo assim, ao trazerem à avenida o fruto de um ano de trabalhos, a este curral de senzala cultural mal acabado, esquecem por um breve momento que são massa política de manobras mesquinhas e ainda assim, num extremo de generosa altivez, trazem ao seu público o mais belo, colorido e feliz carnaval que se pode ver. O mesmo carnaval que atrai os turistas,colore Pernambuco eque também logo se espalhará nas ruas do Recife, de Olinda e em muitas outras cidades.

E qual a paga destes grupos? A subvenção estatal chega quase sempre a meros 15 dias do carnaval e via de regra não cobre nem 10% dos custos reais de nenhum grupo. Oferecem uma passarela onde não há telão. Nenhum. Onde o som que se escuta no começo da avenida chega ao seu final com atraso, atrapalhando a qualquer grupo musical sério. Passarela que os microfones sem fio, da pior qualidade, acabam suas pilhas em meio às apresentações. Onde a inexistente qualidade da captação sonora no percurso dos grupos percussivos, é traduzida por um mambembe apresentador, que ridiculamente acompanha os baques das nações,e grupos, segurando com a própria mão um tosco microfone, até que os grupos sonoros das agremiações cheguem perto da comissão julgadora.Ridículo.

Tosco espetáculo de descaso e despreparo. Jamais. Digo de novo. JAMAIS nenhum artista que se apresente no palco do marco zero, ou em qualquer um dos polos de carnaval espalhados em recife, cantaria em semelhante sucata sonora oferecida às agremiações carnavalescas na passarela da Av. Dantas Barreto. Qualquer discurso de desculpa não pode ser dissimulado pelo fato inexorável que a classe trabalhadora é tratada como excremento! O discurso oficial de carnaval multicultural não deságua na Dantas Barreto.

Como cidadão e artista participante de grupos que realmente constroem o carnaval pernambucano me sinto lesado, roubado em meus impostos e atingido em minha dignidade. Sofro junto aos meus. Mas calar? Não! É necessário que um grupo do porte da Nação de Maracatu Porto Rico, ícone do carnaval pernambucano, na voz de Mestre Shacon, com mais de 140 músicos sob seu comando, se desespere e proteste em plena avenida pela falta de condições mínimas? Qual desculpa darão à foto que tirei dos microfones da Av. Dantas Barreto e que acompanha este texto? Montagem? Estavam lá dia após dia, até o último dia de carnaval!

Urge que as federações de cultura popular de recife, os mestres e mestras dos grupos se deem o valor e as mãos,se unam e exijam as mesmas condições de espetáculo que o palco do marco zero! Acordem! São vocês que atraem a multidão que invade Pernambuco e que movimenta centenas de milhões de PIB em fevereiro! Retirem a cultura popular das ruas de Pernambuco durante o carnaval e sobrará uma multidão inerte, bêbada e/ou perdida, desprovida de cultura e órfã de si mesma.

Turista não vêm a Pernambuco ver artista de sua terra natal. Ele já o vê por lá mesmo! Ele vem assistir a cultura popular dos grupos e do povo que, além de ofertar sua arte e energia nas ruas, na passarela da Av. Dantas Barreto deságua o melhor de suas cortes, escolas, baques, baterias, cabocolinhos, ursos, bois, blocos, reis e rainhas.
Os brincantes que nela desfilam deveriam sentir na alma o corte infringido em sua dignidade e protestar alto,atingindo com suas vozes e voto,a quem desrespeita seu direito de brilhar um brilho verdadeiro. O mesmo desrespeito que subtrai seu acesso à qualidade mínima necessária para apresentar seu espetáculo. Qualidade a qual fizeram jus, a que têm direito e, sobretudo porque trabalharam para isso todo o ano.

Poderiam brilhar em sua plenitude, com a ajuda de seus próprios impostos, dinheiro investido não somente em outros palcos, mas em sua passarela também! Ainda que fosse para brilhar apenas em 40 minutos e uma única vez ao ano. O nome da maioria destes brincantes carentes de respeito? Pode chamar de classe trabalhadora, negra, parda, mulata e pobre. Ou de povo mesmo. Todo desrespeito têm de ter, assim como as senzalas, um fim.

Que o protesto da Nação de Maracatu de Baque Virado Porto Rico tenha eco, suplante as diferenças e possa ser marco de seu começo.
João Pessoa, 18 de Fevereiro de 2013

Professor Dr. Marcello Bulhões
Universidade Federal da Paraíba

Sobre gloria

Desde 2007 me descobri batuqueira; comecei a aprender maracatu no Ilus de Assuada, um dos filhotes da Casa de Cultura Tainã e grupo Urucungus. Em 2008 fui uma das fundadoras do Maracatuca. Minha formação musical veio da Fundação das Artes e depois me especializei em percussão de orquestra, erudita e trabalhei mais de duas décadas na Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas. Sempre dei aula, gosto de ser professora. Fiz mestrado na Unicamp, dentro do Grupo de Educação e Pesquisa em Educação Continuada - GEPEC - na Faculdade de Educação com a Corinta M. G. Geraldi como orientadora nessa caminhada. Agora estudo na Nação do Maracatu Porto Rico com mestre Shacon e vários batuqueiros e a Nação do Encanto do Pinta com vários batuqueiros, mas principalmente caixa com Mariana Bianchi.
Esta entrada foi publicada em Batuqueiros, carnaval, Carnaval 2013, carta ao prefeito, desfile de carnaval, mestre Shacon, Sem categoria. Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *